25.3.24

Visita ao Rio Grande do Sul

 

Voltei ao Rio Grande do Sul depois de alguns anos. Porto Alegre é uma cidade agradável, na qual, por conta do trabalho e da literatura (trabalho sem remuneração), coleciono amizades, inclusive recentes. Bia, a quem fui apresentado pela Ione – gaúcha e carioca que se conheceram no Pará –, faz parte da nova leva, mas já chegou esbanjando carinho e generosidade, parece até que nos conhecemos não é de hoje – nem de ontem.

A capital gaúcha vem renovando a área portuária, planejando inclusive erguer prédios residenciais, o que me parece uma tendência. No Rio de Janeiro acontece a mesma coisa, e não é muito diferente o que se fez em Buenos Aires e Montevidéu. No caso de Porto Alegre, já há um espaço, ao lado do Gasômetro (em reforma, no momento), cheio de bares com pontos de observação do pôr do sol. Jaqueline afirma que é o mais lindo do mundo, assim como são sem igual o vinho e o churrasco da terrinha. O carioca defenderá o pôr do sol do Arpoador, o argentino achará um acinte esse destaque dado ao churrasco. Enfim, nossas paixões nos comandam.

Talvez por eu ser mineiro, Luciano e Júlio riram de mim quando, numa parada entre Bento Gonçalves e Porto Alegre, pedi um café, um pão de queijo e, vá lá, uma cuca. Cuca, especialidade gaúcha, tem o mesmo nome de um bolo muito comum no Rio de Janeiro, mas eles não se parecem em nada. Ambos são bons, assim como era bom o tal pão de queijo comido a caminho de volta da serra – bom, mas não o melhor, lugar incontestável da iguaria feita em Minas Gerais. Aproveitando a oportunidade, a globalização do pão de queijo mineiro deve ser estudada, parece um case de sucesso.

Meus amigos gaúchos me indicaram com entusiasmo uma visita à livraria Bamboletras. Lá encontrei livros do Rubem e do Tiago – meus colegas da Rubem e com quem tomei um chopinho de leve –, além de pelo menos um da Mariana, outra da revista. Me senti bem na companhia livresca dos três. E melhor ainda ao saber que aquela livraria ocupou uma antiga igreja. Nada contra as igrejas – quer dizer, as autênticas, não as que servem de disfarce a bancos –, mas, acostumado a ver cinemas transformados em templos, essa insurgência – fato único nesse Brasil desgostoso da cultura – merece aplausos.

O trabalho me levou, vejam só, a Santa Cruz do Sul, uma cidade da qual eu nunca ouvira falar até um pouco antes dessa minha viagem, quando de lá veio à tona a censura ao “O avesso da pele”, livro de Jefferson Tenório, um escritor negro, carioca e com vida acadêmica no Rio Grande do Sul. Uma diretora de escola pública da cidade e logo depois seus iguais em escolas paranaense e goiana viram na história de Tenório uma ameaça à juventude. Os livros estão sempre na mira dos conservadores. Daqui a pouco, a pira queimará uma pilha deles, pois depois do caso Jefferson a censura continuou excitada: o Sesc tem censurado o romance do paraense Airton Souza, “O outono de carne estranha”, vencedor, vejam só a ironia, de seu último concurso literário. Ah, os livros!

Santa Cruz do Sul é uma cidade bonita, tem um igreja gótica impressionante e sua rua central é toda arborizada, um exemplo urbano. Eu e os colegas de trabalho chegamos lá à tarde e corremos para ver a igreja aberta. Íamos comentando como a cidade parecia segura quando à nossa frente nos deparamos com dois ou três carros de polícia. Custamos a entender o que se passava. Eles atendiam à denúncia do conselho tutelar de que havia uma criança sozinha na rua, não sei se mendigando. Pelo que entendi, a cidade está atenta a possíveis abandonos. Pode ser bom, ainda que, na minha avaliação leiga, as viaturas policiais são um exagero e parecem indicar que o que se tem não é zelo pela infância, mas controle sobre ela.

Dormi lá. De manhã, um monte de gente se dirigia à praça. Fiquei encafifado pelo fato de todos carregarem uma “cadeirinha de praia” (há uma grande empresa produtora na cidade). Depois percebi que havia um palanque e julguei que fariam uma assembleia – uma estranha assembleia na qual os militantes ficariam sentados. Desejei que fosse o movimento de professores contra a colega censora. Uma senhora me esclareceu que os funcionários públicos exigiam melhores salários. Agradeci a informação, dei meu apoio à causa, mas saí de lá torcendo para que a tal diretora e perseguidora da literatura não levasse o dinheirinho a mais. Ela não merece. Quanto a mim, mereci degustar um churrasco na cidade, uma coisa dos deuses.

Ao deixar Porto Alegre, peguei um Uber dirigido por um rapaz jovem, que se mudou de Uruguaiana para a capital e ganha a vida como motorista. A conversa fluiu e, por sorte, encontrei um crítico de toda essa direita enlouquecida que ainda atua no país. Em seu perfil no aplicativo, ele diz gostar de filosofia, literatura e música. Imagino estar se sustentando desse modo, mas de olho numa outra vida. Desejo-lhe sorte. No voo, a mulher sentada ao meu lado – não sei se gaúcha, mineira, carioca ou extraterrestre –, leu a viagem toda. Título do livro: “A coragem de ser imperfeito” – na sinopse disponível na internet, está escrito: “aceite a sua vulnerabilidade e ouse ser grande”. Ah, os livros!

10.3.24

Maria Escolástica

 às crianças da Palestina


Dos filmes que têm circulado, inclusive candidatos ao Oscar, “Dias perfeitos”, de Wim Wenders, com o incrível ator japonês Köji Yakusho, foi o que me tocou mais profundamente. O enredo do diretor alemão e de Takuma Takasaki se passa no Japão, com atores japoneses, equipe japonesa e falado em japonês. É quase mudo, além de ser de poucos movimentos, ao contrário do que eram as fitas de Charles Chaplin ou Buster Keaton. A música é uma personagem, a voz do silencioso Hirayama, o limpador de banheiro público em Tóquio. Tenho assistido a algumas produções ótimas, como “Pobres criaturas”, “Anatomia de uma queda”, ou a não tão ótima “Saltburn”, e o de Wenders se diferencia delas por nos convidar a buscar um cantinho, tirar os sapatos e tomar um café no mundo interior. Os outros, ruidosos na sua maioria, são de embates, de personagens que se afirmam quando lutam contra um lá fora hostil. Hirayama não quer nada disso, ainda que não seja nem tolo nem alienado. Aos poucos, temos algumas pistas de sua vida e podemos levantar hipóteses sobre por que está ali, levando aquela vida simples, rotineira, sem grandes contrariedades.

Toda noite, Hirayama sonha imagens meio tremidas, cheias de sombras. Todos os dias, fotografa as sombras formadas por uma imensa árvore (a questão das sombras se explica, desde que o espectador espere o final dos créditos). E a esse respeito, houve uma coincidência. Um ou dois dias antes de ir ao cinema, acompanhei a live “A fim de poesia” que a poeta Noélia Ribeiro faz, desde o início da pandemia, no Instagram. Na temporada mais recente, ela mudou a dinâmica. Agora, em vez de convidar poetas e promover um sarau no qual eles leem seus poemas, ela e Fátima Ribeiro escolhem poesias e as leem. Naquela ocasião, Fátima leu um poema do meu “O sol pelo basculante” (editora Urutau), que reproduzo a seguir.

 

O homem íntegro

                                                                        a Eustáquio Grilo

 

Não sou desses homens que têm dois lados

o A em contraposição ao B

o beco às terças, a avenida aos domingos

o comezinho de costas para o incomum

a alma contra o corpo.

 

Mesmo assim ou por isso mesmo

amo desconfiado

trabalho desconfiado

vivo desconfiado

— há, na integridade, uma sombra.

 

Tenho, como todos,

peito e dorso

bunda e coco

ombro e sexo

joelho e calcanhar.

 

Dentro e fora, o único rosto

em feriados e dias úteis, um só esforço

na mesma bica, o sedento e o saciado.

 

Tomo como certa a hora de

cortar o cabelo. E como medo

inconfesso que me aparem a sombra.

 

 

Meu poema – aqui não há uma questão de valor ou coisa similar – faz fronteira com “Dias perfeitos”. Não é uma afirmação narcísica, mas a percepção de pontos de diálogos. Hirayama se encaixa bem no homem íntegro do poema.

Seja como for, e seja lá o que isso tudo é, Wenders berra a favor da simplicidade – em entrevista, ele disse: “Dias perfeitos é o mais próximo que já cheguei de fazer uma declaração sobre a paz” – e me remete a uma vida que já tive: a de jovem do interior de Minas. Lá viveu minha prima Maria Escolástica. Era sobrinha de meu pai, mas não diferiam muito em idade. Dona de uma casa movimentada – aos filhos e, depois, noras, genros e netos, agregavam-se sobrinhos, primos, vizinhos –, ela tinha uma máxima recorrente: tudo é bobagem.

Hirayama, ao dar acolhimento à sobrinha que foge da casa dos pais, leva-a para ver o rio, e ela lhe pergunta se o rio vai dar no mar. Sim. Ela pede para irem até lá. Ele responde que da próxima vez irão. A menina indaga quando é a próxima vez. E ele: a próxima vez é a próxima vez. Ela insiste. Ele mantém a resposta frouxa e acrescenta, agora é agora. Ambos saem pedalando e improvisando uma melodia para “a próxima vez é a próxima vez, agora é agora”. Uma cena linda, num filme de muitas cenas lindas. Bem, mas eles poderiam sair cantando “tudo é bobagem”. Minha saudosa prima Maria Escolástica está na gênese do filme de Wenders.


25.2.24

O perrengue da comunicação

 


Quando eu disser a vocês o que tenho a dizer, vocês me dirão – É isso o que tem a nos dizer? E eu direi – O que vocês queriam que eu dissesse?

Eu disse, ela disse — Repete. Eu repeti, ela repetiu – Repete. Eu repeti, ela repetiu – Repete. Eu repeti, ela disse – Você não se cansa?

A mãe perguntou ao filho se estava entendido. Ele disse que sim, só não entendeu exatamente o que deveria ser entendido. A mãe então concluiu – Ok, estamos entendidos.

Ele me pediu um minuto. Pegou um papel, fez um desenho. Era uma cena chocante, um monstro engolia uma pessoa pela cabeça. Eu ainda me perdia nos detalhes da gravura, e ele já me perguntava se, vendo e não ouvindo, tudo se esclarecera. Eu respondi – Bem, o desenho tem problema de perspectiva.

Quando ela começava a se despir, ele disse – Espera. Ela ficou estática. Ele não disse mais nada. Ela continua lá.

Do nada, ela diz – As árvores trocam mensagens umas com as outras. Eu pergunto – E daí? Ela responde – Daí que o desentendimento é maior do que imaginamos.

Ouvir, ouvi, mas ouvir é pouco.

O palestrante perguntou – Alguém? Eu levantei o dedo. Ele nem deixou eu me ajeitar direito na cadeira – E então? Eu respondi – Concordo. Ele se surpreendeu – Com o quê? Escandi as palavras – Com o que o senhor não disse.

O prefeito mudou o nome da rua. Todas as cartas endereçadas a ela foram parar numa rua homônima em outra cidade. As pessoas que as receberam abriram, leram e responderam uma a uma. Assim, aceitaram o convite para um date, o pedido de perdão, mas, num caso, o falso destinatário reclamou – Alguma coisa deve estar errada, o aluguel está em dia, o IPTU é que ainda não deu pra pagar. Não parou aí – E não me chamo Raimundo, Perivaldo é meu nome.

A professora pediu a atenção de todos – De todos. Começou então a falar de forma automática o discurso de começo de ano. Os alunos se distraíram em surdina. Quer dizer, Luisinha não, ela estava tão atenta que caiu no choro quando a professora disse que não eram dela aquelas palavras.

Discreto é o suspiro, no entanto é sempre bem entendido.

Tiramos a palavra na sorte. Fiquei pensando o que fazer com a minha. Enfim, decidi ficar calado, com o olhar de quem acompanha um voo de pernilongo.

Na voz miúda, dizem que a guerra foi perdida quando o comandante ordenou que atirasse a primeira pedra aquele que não sofreu por amor.

Bateu à porta da casa da namorada. Nada. Bateu de novo. Nada. Mais uma vez. Nada. A namorada, ao lado, não sabia o que fazer.

Ela deu um sonoro não ao pedido de casamento. O rapaz, assustado, mas célere, buscou uma saída – Esquece o casamento, vamos tomar um sorvete. Ela respondeu – Uma coisa dessas só faço depois de casada. E completou – Você tem uma bicicleta?

Depois de ler o jornal de cabo a rabo, a garota levantou-se e foi à cozinha. Lá encontrou a cozinheira. Elas se olharam, se olharam e mais uma vez se olharam. A garota saiu de lá certa de que o jornal jamais olharia para ela e a cozinheira. Jornal gosta é de distâncias.

Esse negócio de beijar na boca de olhos fechados tem deixado muita gente a ver navios.

Achou muita graça ter ganhado o prêmio de quem menos entendia piadas.

Escrevi muitos livros, compus músicas mil, pintei quadros a valer, pena que sempre estivesse dormindo.

Com a casa vazia, o rapaz anunciou – De agora em diante, falarei o que me der na telha. Gotejou então duas ou três ideias que as paredes, caso tivessem ouvido, o teriam tampado.

Eu queria dizer a vocês, mas vocês não me entenderiam. Então não digo. Será que vocês me entendem?


10.2.24

Um falcão de volta ao céu


Lá na rede social,

passa boi, passa boiada

às vezes a gente acredita,

noutras, pensa, “é marmelada” 


Nos primórdios do mundo virtual, o e-mail parecia uma coisa mágica, mas, com a chegada das redes sociais, um tempo depois, ele passou a quase nada. Estávamos diante de uma inovação que mudaria de vez – para pior e para melhor – nossas vidas.

As coisas ruins só fazem crescer: excesso de propaganda, suspeita constante de vazamento de nossos dados, ditadura do algoritmo, vista grossa dos donos das poderosas redes aos descalabros que circulam livremente por elas, verdadeira bomba capaz de destruir os alicerces da vida social em harmonia, a própria democracia. Tudo isso num ambiente – como outros tantos no capitalismo tão pouco concorrencial – de alta concentração: quatro ou cinco redes nos prendem a todos.

Dorrit Harazim, jornalista que dá gosto de ler, em recente coluna falava sobre as possíveis cem mil vítimas palestinas (não há contagem, apenas inferência) na guerra entre Israel e Palestina. (Não vou comentar esse conflito, que, a meu ver, está longe de ser uma simples resposta de Israel a um ataque terrorista.) Na conclusão de seu artigo, Harazim cita uma carta de John Steinbeck a Pascal Covici escrita no início da Segunda Guerra. Depois de o autor de        “As Vinhas da Ira” afirmar que a espécie humana não aprende as lições que toma (“a experiência de 10 mil anos não deixou qualquer marca sobre os instintos do milhão de anos anteriores”), ele conclui: “Não digo que o mal vence – jamais vencerá –, digo apenas que ele não morre...”. Essa percepção cabe bem para ilustrar o perigo que ronda as redes sociais.

Sejamos justos: existem as coisas boas. Já pensou a pandemia sem as lives, sem a consulta médica ou a terapia à distância? Melhor nem pensar ou pensar que, além disso, essas redes ainda permitem que façamos amigos a léguas de nossa casa e que reencontremos alguns deixados pelo caminho. No filme “Vidas passadas” (da sul-coreana Celine Song), por exemplo, dois amigos, namoradinhos na passagem da infância para a adolescência, conseguem, graças a uma rede social, se reencontrar doze anos depois de a menina, Na Young, ter se mudado para o Canadá. É um filme bonito, introspectivo – e que toca com delicadeza a questão da imigração –, no qual o mundo virtual só está ali de forma coadjuvante como deveria ser.

Nas redes, arredio como sou a grandes embates, quando não estou divulgando meus textos ou fazendo chacota da vida, me distraio com receitas culinárias ou macetes para disfarçar uma fenda na parede ou dar vida a plantas moribundas. Logo eu que quase não cozinho, não cuido de plantas e não tenho o menor pendor para pintar paredes, consertar ferro elétrico, enfim, para lidar com afazeres tão domésticos. Diante de minha confissão, não estranharia se me censurassem pelo tempo gasto com inutilidades e vissem em meu entretenimento um tico de tristeza doentia, uma queda pela escuridão. Se é assim, diante do breu e obediente a Thiago de Mello, eu canto.

Além desses vídeos sem-noção, curto outros simples, que – se não saíram da cabeça de uma Inteligência Artificial, hipótese a não ser descartada –, me enchem de esperança. São delicados os que mostram um urso panda brincando na neve e a dificuldade de uma elefanta ou de uma onça para atravessarem seus filhotes numa rodovia – tem sempre um que volta. Um vídeo me toca em particular: três pessoas, cientistas, imagino, chegam ao topo de uma montanha e tiram de uma caixa uma ave enorme, um falcão, se não estou enganado. Esse animal fica andando de um lado para o outro, estudando a paisagem, reconhecendo a casa, decidindo o melhor momento de voltar ao seu habitat. Ele vai para cá, vai para lá, vai e volta de novo até tomar coragem e despencar no céu. Vibro pela ave de voo tão seguro, mas igualmente pela atitude daquelas três pessoas cujos rostos não são mostrados. Elas devem ter resgatado o animal fragilizado e o levado a um centro de tratamento, onde ele foi recuperado. Aos poucos, treinaram a ave, a estimularam em voos controlados e, depois de muita observação, concluíram que era o momento de devolvê-la à liberdade.